Carta aberta ao Racismo
Velado.
Atualmente, o negro, assim como outros
grupos estigmatizados e estereotipados, pela sociedade, elite e mídia, aprendeu
a ter consciência de seu direito ao respeito incondicional – até que se prove o
contrário, claro. Isso assusta os reacionários que estavam acostumados a fazer
suas “piadas” ridicularizando boa parte – maioria, na verdade – da população. É
quando os sem talento alegam ‘censura’, ‘politicamente correto’ e outras formas
de desqualificar a luta por respeito, como se o que tivéssemos até hoje já
fosse uma beleza de igualdade e diversidade. Não, não para nós, só para eles,
que nunca foram discriminados, inferiorizados e ridicularizados.

Pra descendentes de um povo que saiu das
senzalas direto para os cortiços e favelas, não é engraçado ser tratado como um
tipo exótico, subserviente e preguiçoso, vivendo às custas de “esmolas” do
governo. Até porque, os que verdadeiramente mamam das tetas da Administração
Pública estão lá se fartando sem censura.
Por isso, acho que o termo ‘politicamente correto’ deveria ser usado
justamente por esses representantes do humor ofensivo, pois estão mostrando que
aprenderam direitinho o que nossa política dominante sempre mostrou, ou seja,
eles estão corretos frente ao que ‘seu mestre’ mandou.
Então, aconteceu, dia 3 de novembro de
2013, um quadro humorístico, (Baú do Baú) do Fantástico, em que o ‘repórter’
(Bruno Mazzeo) vai cobrir momentos marcantes na história, vai até o dia 13 de
maio de 1888 cobrir a assinatura da Lei Áurea e sua subsequente comemoração. A
princípio, parecia uma crítica à letargia a que a população foi condicionada
pelo assistencialismo institucional do governo e placebos culturais, como o
carnaval e o futebol – que são empurrados no povo como se fosse alento
suficiente gritar em frente uma TV, para compensar as dificuldades financeiras
da população, por exemplo.

Pegou mal, primeiro, porque não foi um
ato de pura benevolência da família imperial (tida como a branca salvadora dos
negros enquanto o negro Zumbi é difamado como um bandido), foram diversas
pressões internas e externas para o fim daquela abominação naturalizada. O
negro deixou de ser escravo apenas porque o sistema econômico baseado na
escravidão fora extinto (por último, no Brasil) sem que houvesse políticas –
como as cotas – para que o negro fosse incorporado à sociedade de forma
igualitária. Provavelmente nem teria sido essa a intenção, já que tenta-se até
hoje embranquecer a população através da miscigenação e a falsa ideia de que
ela elimina a raiz afrodescendente de nosso DNA social.
Mas o mais grave do intento de domingo 3
de novembro, é que as bolsas do governo poderiam ser criticadas de N formas,
inclusive usando qualquer pretexto social genérico (já que os difamadores das
cotas raciais, por exemplo, sempre dizem que o problema no Brasil é social e
não racial – como se uma sociedade racista criada à base de escravidão negra e
índia não fosse um problema social), mas usaram a população negra. É notório
que o 20 de novembro é muito mais representativo para a comunidade negra – pela
vida, luta e morte de Zumbi por liberdade - do que o 13 de maio. Logo, só
podemos concluir que a matéria em si, assim como a escolha da data de exibição,
não foi aleatória, porque é um fato que não existe isso de “é só uma piada”,
pois como toda peça de comunicação, uma piada é uma mensagem que carrega uma
ideologia qualquer. Neste caso, o racismo velado do Brasil.

À medida que o negro vai obtendo êxitos
sociais, vai ficando visível perante a sociedade, bem como o racismo também vai
aparecendo. Muita gente é racista, mas nem percebe, só sente que é estranho o
negro reclamar de algo que um branco não vive, ideia essa programada pela grande
mídia, como se a tão celebrada “abolição” tivesse sido a própria medida de
igualdade entre a população. Tipo, você não é mais escravo, toma esse Bilhete
Único e vá ser feliz. Não, não é assim, ao passo que até os ex-donos de pessoas
escravizadas receberam indenizações pra compensar suas “perdas”; e os imigrantes
receberam incentivos financeiros para ocupar os lugares antes impostos a
escravo, o negro saiu de mãos abanando.
A reportagem teve um viés crítico a
medidas do governo como Bolsa-Família, Bolsa-Escola, Minha Casa Minha Vida e
cotas raciais e sociais em instituições de ensino público. Pensei se não fora
uma impressão minha. Mas, não, não pode ser encarado como mal entendido, pois,
a emissora não tem 10% de negros em sua programação (talvez no Esquenta, o
programa falsamente representativo, que só mostra ao negro que ele deve viver a
filosofia “a gente se ferra, mas se diverte” e não aborda questões sociais
vividas justamente pelo povo da plateia). Aliás, um dos diretores poderosos do
jornalismo platinado, Ali Kamel, defende a mitológica democracia racial alegando
que classificar parte da população como negra é dividir o povo, e ainda
escreveu ‘Não somos racistas’, pra confirmar sua filosofia e propaganda
ideológica. Se não somos, porque um elenco de uns 70 atores, em média, só
apresenta, frequentemente, uns 3 atores negros? Não somos racistas porque não
reconhecemos o negro como cidadão, né?

A Rede Globo precisa saber, definitivamente,
o que significa representatividade. Não somos joguete midiático. Não somos
moda, não somos palhaços, nem estamos mais dispostos a ser provocados
diariamente com piadinhas subliminares acerca da nossa ancestralidade, nossa
identidade. Não somos bobos da corte para entretenimento da elite. Não somos
Black Faces, como a Regina Casé gosta de nos mostrar e pagar de representante
da favela. Queremos espelhos para crianças, jovens e adultos, moradores das
favelas, comunidades, guetos, vielas sim, mas que essas pessoas vejam exemplos
de negros e negras que venceram dentro de um sistema feito para oprimir o negro.
Queremos que a nossa população, nosso
povo, olhe para os bons exemplos. Que saibam e acreditem que o futuro pertence
a nós também. Que somos capazes de sair de onde a sociedade, historicamente, nos
colocou. Queremos que a imagem do negro deixe de ser vinculada apenas ao criminoso,
o “ser exótico” ou em funções subalternas, como a TV adora mostrar. Já
ultrapassamos as portas da cozinha há tempos, mas, pela mídia, parece que é
melhor ficarmos recolhidos à nossa insignificância, pois é o melhor que teremos
na vida.
Queremos ver o negro cotista, o negro que
se formou – assim que teve uma chance -, a empresária preta, aquela que passou
fome, lavava roupa pra fora e se formou em medicina... Queremos exemplos, pois
isso vai ser visto por pessoas que vão entender que não há um lugar determinado
pela natureza para cada etnia, isso sim é ser espelho e janela para a nação,
isso é primar pela diversidade como se diz em teoria. Seu sistema elitista não
vê racismo no país porque é dominado por um grupo social que nunca sofreu
racismo, porque não precisou se unir e preservar sua identidade, o negro sabe
como é isso, o índio sabe como é também.

Queremos que a elite saiba que o preto,
pobre, favelado tem a mesma capacidade intelectual de chegar aonde ele quiser e
que não aceitamos de jeito nenhum o lugar que nos colocaram. Queremos que os irmãos que estão
desesperançados com esse desnível social e financeiro saibam que mesmo com toda
opressão, a gente pode ser o que a gente quiser. Ninguém mais do que nós
ficaria feliz em viver essa lendária democracia racial, o problema é que seu
racismo é tão naturalizado na sociedade que as pessoas não o assumem. Como
disse Patrícia Kogut, em uma matéria de seu blog: “Como expor o preconceito
fingindo que ele não existe?”.
Portanto, diante de todos estes fatos, somados
a uma imensa indignação com a total falta de respeito não tão somente da
emissora de TV, mas também de toda uma população caracterizada por sua
intolerância ao indivíduo preto; Por toda a falta de respeito que circunda o
dia 20 de Novembro, sobretudo os dias que antecedem esta data; Por todas as
vezes que o busto de Zumbi amanheceu pichado
justamente no Novembro Negro, por toda a violência racial que vem sendo
praticada pela Rede Globo contra nós pretos e pretas, disfarçada de uma
democracia racial que não existe, é que abaixo assinamos esta carta e levamos a
público.
Conheça mais:
Alê
de Mattos/Preta&Gorda
Fernando Garcia