Sabe quando um pequeno detalhe tira todo o peso do
sentido de algo? Tipo, uma vírgula que muda uma frase ou um penteado que muda o
rosto de alguém? Pois bem, isso acontece com uma série em específico muito
legal e eu vou explicar qual é o problema.
Entendendo a série
Black-ish é uma série daquelas típicas ‘sitcom’, mas –
graças a Olodum – não tem risadinhas forçadas, muito menos as piadinhas
forçadas que as estimulam na edição. É a história de uma família negra de
classe média alta e seu ‘líder’ tentando passar para seus filhos a cultura de
negro do subúrbio que ele viveu, mas não seus filhos, dada a condição
financeira/social a que ele pode lhes proporcionar.
Tudo é interessante ali, porque a esposa de Dre (o pai da
família), Bow, é filha de uma mulher negra com um homem branco, então também
entra a questão multirracial (que aqui no Brasil é mais tipicamente miscigenada),
o que também gera situações interessantes para ela mesma e para seus filhos (sério,
assista ao episódio em que ela se vê em crise de identidade por ver seu filho
namorar uma branca e a explicação animada de como a negritude mestiça é vista/se
vê socialmente lá). Também tem a questão do consumismo e poder aquisitivo de
todos e o modo como é mostrado que negros que ascendem socialmente tendem a se
esquecer de suas raízes passando a conviver com mais brancos e com melhor
situação financeira.
Mas então qual o problema, Saga?
Oras, gafas (diminutivo carinhoso para gafanhoto), o
problema é que no Brasil, não temos uma cultura de mídia voltada para o negro
como existe nos EUAses. Lá, mesmo que a maioria raspe a cabeça, estique os fios
ou mesmo use perucas de cabelo lisos, ainda há uma forte noção enquanto grupo sociocultural
com identidade e público próprios. Lembremos que lá teve uma guerra civil e
conflitos urbanos por direitos civis dos negros. Aliás, lá, negros são minoria,
não só em representação social e política, mas também em quantidade
populacional (pouco mais de 10%, até a última vez que li sobre o assunto), então,
lá, o branco é o público ‘top of mind’, aquele principal que a mídia se
interessa.
Sendo assim, a série, enquanto produto comercial, é feito
para negros, em primeiro lugar, e demais raças que se interessem pelo assunto.
Ao contrário daqui, não existe segmentação, o branco sempre é o priorizado,
apesar de o público que assiste aquie é negro/pardo e é mais de 50% da
população. Então, ocorreu um problema na tradução que, acho eu, na minha inútil
opinião, tenha a ver com tudo isso: A falta de representatividade
significativa, falta de conscientização dos responsáveis e traduções ruins.
A tradução não é lá essas coisas
Sempre falo, e já escrevi neste blog, mais de uma dúzia
de vezes, que a sociedade – aqui, nos EUAses e em todo o mundo – o público
privilegiado sempre é o branco. Logo, o branco é o ‘normal’, enquanto nós,
negros deste exemplo, somos o ‘exótico’, aquele que é visto como um brasileiro
com ressalvas (lembro logo que racistas me mandam ‘voltar pra África’, mas não
pensam em ‘voltar pra Europa’). Enfim, sendo assim, a série ganhou uma tradução,
no mínimo, preguiçosa, de tão genérica.
Eu falo, porque, o branco sendo o público-alvo da mídia
brasileira, seria normal não quererem abordar o tema ‘negro’ no título
nacional, afinal, infelizmente, muito negro aqui ainda acha que deve viver à
sombra do branco, e as emissoras são comandadas por brancos ricos que não se
interessam (lembra do horrível Sexo e as Nega?). Só o dia em que o negro abrir
a boca pra gritar, todos ao mesmo tempo, que queremos nos ver mais
representados. Aí, vão se ligar que somos maioria dos consumidores do país, mas
estou divagando. Colocaram o nome, em português, de ‘Família Desajustada’.
Mas o que tem a tradução, afinal, Saga?
É o seguinte, se você traduzir 12 years a Slave como ‘Um
tempão ralando’, daria a noção de que o protagonista passou 12 anos
escravizado? Então, não seria uma boa maneira de traduzir o emblemático 12 Anos de Escravidão, né? Ou Amistad. Imagina
se traduzem o filme como ‘Um navio muito louco’. Não fala que se tratou de um
navio negreiro, saca?
Pois bem, Black-ish traz a temática no nome, que tem até
uma definição do dicionário na abertura dos episódios. Trata-se de algo que
poderia ser traduzido no sentido de ser um assunto relacionado à negritude,
assuntos de uma família negra, sacou? Quando chama de Família Desajustada, eles
podem estar descrevendo qualquer família, porque toda família é, em algum
nível, desajustada.
Como eu falei aqui no blog, se você põe um ator branco
pra interpretar o Super Choque, por exemplo, você descaracteriza o personagem,
pois, ele foi criado negro, justamente, pra ser a representação dos negros de
subúrbio. Um cara branco, além de ser minoria nos guetos, não passaria pelas
mesmas situações e não alcançaria o público negro da mesma forma. A tradução de
Black-ish tem esse efeito. Era pra já trazer no carta ode visita que é uma
temática negra, e se perdeu no título em português.
Família desajustada pode se aplicar a negros, brancos,
chineses, nativos americanos, mas Black-ish é um nome que evoca a série de
corpo e alma. Existem os casos de traduções literais (A Anatomia de Grey/Grey’s
Anatomy) e existem as adaptações fiéis (Era Uma Vez/Once Upon a Time), mas essa,
de Família Desajustada, trabalha ao contrário, dando uma ideia de que o a
temática é de uma família problemática e não de uma família negra aprendendo a
conviver com os tempos diferentes em que a ascensão social melhorou para
alguns.
Enfim, muito besta essa tradução, seria como traduzir
Titanic como ‘Um navio que afunda’, matando o assunto diretamente tratado no
título. Já dá até pra imaginar a descrição do locutor se Black-ish passasse na
globo: Esse tremendo malandrão vai comandar as maiores confusões dessa família
no maior clima de loucuras da pesada. Dá pra imaginar que o público vai
assistir achando que é um pastelão rasgado e não uma discussão bem humorada,
porém direta, sobre a vida de uma família negra e sua localização de identidade
social.
2 comentários:
Cara, a Globo ta exibindo como: Black*ish, mais ou menos negro.
Caia para trás com essa,viu.
As novas temporadas está sem legenda em todos os lugares
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