Crônicas, divagações e contestações sobre injustiças sociais, cultura pop, atualidades e eventuais velharias cult, enfim, tudo sobre a problemática contemporânea.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

O Rei Leão e a sociedade (nova versão)



Eu tenho uma reflexão – epifania, insight, sei lá – há alguns anos sobre o clássico da Disney, O Rei Leão, e já mencionei por alto em alguns textos, postagens e conversas informais. Segundo minha filha, inclusive, isso ‘acabou’ com sua infância (risos). Pois bem, sempre pensei em transformá-la (a reflexão, não minha filha) em em um artigo devidamente publicado e o momento é agora, com o advento do remake do filme, 25 anos depois.

Não que eu pretenda assistir à nova produção – quer dizer, vou acabar assistindo em algum momento – mas além de não suportar sequer lembrar da morte de Mufasa, acho que a releitura com uma roupagem mais ‘realista’ não me atrai tanto quanto o próprio original. Digo, não acho nada lá que precise de uma atualização para as novas gerações. Ou melhor, acho que o antigo ainda é novo, atemporal, enfim, traços que um verdadeiro clássico precisa para ser considerado um... er... clássico (dah!).

E ainda complemento o raciocínio dizendo que o tal estalo (de percepção da fábula, não do Thanos – Rá!) ganhou contornos sociais mais complexos em minha visão de adulto diante de uma reprise há alguns anos. Veja bem, eu tinha uns 12 anos quando saiu O Rei Leão nos cinemas, então, mesmo com uma trama intensa carregada por uma das animações mais bem feitas que já vi, deu pra perceber que a história fala de responsabilidade, de assumir seu lugar onde você pertence e transformar seu mundo num lugar melhor. Aquele papo de redenção a que todas as obras Disney se propõem a fazer dentro dos passos da Jornada do Herói – ou Monomito – de Joseph Campbell.

E é citando a palavra mito que já digo de cara que a tal reflexão é que além da história do herói que passa por percalços, dúvidas e inseguranças, mas precisa tomar as rédeas de sua própria vida e de seus entes queridos, o período eleitoral de 2018 me deixou, além de muito esgotado psicologicamente, também com a oportunidade de “viajar” em uma interpretação pessoal da vida sobreposta à obra felina dos Estúdios Disney. É, é sobre a sociedade e como ela vê seus líderes. Ocorre-me sempre nessas horas uma piada que meu pai fez sobre essa coisa de novelas trazerem tantas interações pessoais entre pobres e ricos: "Rico convidando pobre pra uma festa? Só se for pra trabalhar".

Observe, no filme, que já no clipe de abertura, todos – TODOS! – os animais da savana africana correm para um evento que, sem enrolações, fica exposto que é o nascimento do filho do rei Mufasa e da rainha Sarabi, o leãozinho Simba, que será apresentado a seus súditos. Para alegria geral, seu Padrinho Rafiki não o arremessa lá de cima (sério, eu achei que era isso que ia acontecer na primeira vez que vi – risos de nervoso). Segue o cortejo.

Mesmo aos 12 anos, eu tinha umas questões de imaginação muito fértil (Fantástico Mundo de Bobby era quase sobre minha infância) e um questionamento que me apareceu na época era porque um babuíno estaria no meio de leões? Isso foi o que me fez pensar que ele ia jogar o filhote de leão lá de cima (e iniciaria uma cena de luta, perseguição e fuga animais – Rá!). Só muitos anos depois eu entenderia que eu não estava ainda imerso no maravilhoso mundo da suspensão de descrença (que é o termo usado pra definir quando você ignora certas normas da vida real pra embarcar na fantasia do filme).

Só que depois de grande e aprofundado em questões sociais, raciais e essas bossas, esse pensamento encontrou bagagem pra se desenvolver. O que eu apresento neste texto. Além de achar que o macaco ia aprontar alguma por fazer parte do grupo que os leões comem e não do que eles fazem amizade e se tornam compadres, reparei um raio de observação maior: O que aquele tanto de zebra, antílope, girafa e elefante comemora? Mais uma boca pra devorá-los? Sim, é uma fábula, um tipo de condução de história que usa animais para representar ações e sentimentos humanos, mas essa alegoria dá essa brecha. Não?

Vamos lá, na suspensão de descrença da minha visão sobre o filme: É a sociedade em sua essência. Temos diversos grupos, classes sociais, raças, etnias, gêneros e transgêneros e sempre tem aqueles grupos que praticamente nascem pra alimentar e os que são alimentados... de carne e/ou de riquezas materiais. Você imagina o filho do churrasqueiro nascendo e a boiada indo lá mugir de felicidade por mais um par de mãos pra conduzir garfos, facas, espetos e machadinhas? Pois na sociedade (sur)real acontece isso. 

Olhe pro lado e veja quantos pobres vibram e até brigam por líderes políticos e religiosos que nem ligam pra eles, apenas os enganam pra manterem sua fonte de renda ou, no caso dos leões, o sustento de sua família. Pois, se esses líderes os defendessem, iriam ironiza-los por 'gostarem de pobre'. Aliás, se você não enxergar os seguidores xiitas das classes opressoras, então, você é um desses. Rá!

Não estou dizendo que esta seja a mensagem oculta do filme, não é uma teoria da conspiração, é uma forma de interpretar em cima de uma obra feita. É quase... ou melhor, é um real exercício de imaginação, com alguma perspectiva forçada, no sentido de que não estou empurrando na mente de ninguém que o que eu penso precisa ser avaliado como representação real. É uma teoria aplicada na realidade. Como dizer que Super Mario é a alegoria da vida onde você pode consumir substâncias, juntar algum dinheiro, comprar coisas e ter cuidado com os obstáculos e criaturas desagradáveis no caminho em busca de quem você ama.

É isso, não quero reinventar a forma de se ver O Rei Leão, só estou dando vazão a uma inquietação que tenho há anos e esse remake já me serviu muito na vida por isso. Talvez eu queria ver a nova versão só porque o elenco está representativo e pop (Alô, Pantera Negra, alô, Marvel! TMJ!), mas é só. Sem o encanto Disney, Zebras e gazelas correm para o lado oposto ao do leão. A vida já é muito difícil com crocodilos, cobras e víboras pra gente ver um filho de rico nascer e correr pra lá pra aplaudir. A menos que sejam celebridades no Instagram. Ninguém resiste! NIN-GUÉM!

Ah, tem a questão do Scar. Ele sim é um leão mais condizente com a realidade. Em um encontro com as hienas – quando ele propõe o plano que vai dar cabo na vida de (R.I.P) Mufasa e espantar Simba pra bem longe do reino, deixando o comando em suas mãos. Aliás, esse universo é bem machistinha, se reparar bem. É sabido que leões são comandados por um líder, mas a rainha em nada conta na história e na ausência do marido e do filho é o cunhado quem assume? Suspensão da descrença, eu invoco você!!!

Hmm... viscoso, mas gostoso!

Mas, voltando, Scar é o vilão. Sim, ainda era um tempo maniqueísta, onde o bem é todo bem e o mal é todo mal. Não sem falhas dos dois lados, mas não há um aprofundamento em porquê Scar se tornou um psicótico egoísta assassino (mas sabemos que ele virou um belo tapete, como propõe Zazu, basta assistir à animação do Hércules, também da Disney). Independente disso tudo, no tal momento que Scar trama seu golpe de estado, ele arremessa um “agradinho” para seus cúmplices. Sabe o quê? Uma suculenta perna de zebra!

E aí, você consegue rever a cena de abertura e pensar em qual delas dançou pra que as hienas tirem seu pequeno petisco? Já imaginou onde está e quem deu jeito no resto do corpo? É isso aí mesmo que você tá pensando. Árvore que defende a motosserra, frango que adora a raposa e gente que chama político corrupto envolvido com criminosos de mito. O ciclo sem fim!

Vocês fora uÓtemos, galera, beijos no cérebro e, caso espirrem, saúde! Hakuna matata!

terça-feira, 16 de julho de 2019

Scarlett Johansson e a polêmica da representatividade


Scarlett Johansson teria dito, recentemente, que a arte deveria ser livre e que limitar papéis em nome da diversidade seria privar o artista da liberdade de interpretar quem ou o que quer que fosse. Ou algo que o valha...

Já digo, de antemão, que ela não tá errada não. A arte, realmente, é algo subjetivo e sensorial que não deveria ter um filtro ou um manual pra ser exercida ou recebida. Mas, aí, temos um grande filtro – ou canal, como prefiro me referir – chamado humanidade. E não to falando bonito do conceito filosófico de humanidade, embora esbarre nisso também. Estou falando do ser humano em si, do fato de que ideias, sentimentos e tudo mais no campo do pensamento, passe pela cabeça humana.

Veja bem, sou fã da jovem Johansson desde sua entrada no Universo Cinematográfico Marvel (e de sua praticamente desconhecida carreira musical, sim, ela canta e bem) pois achei que ela foi uma importante adição enquanto atriz e mulher de grande valor num mundo e numa indústria essencialmente machista. Só por isso, vou acreditar – salvo se houver confirmação contrária depois – que suas palavras foram distorcidas pela edição da revista à qual concedeu entrevista sobre o assunto.

“E qual é o assunto, Saga?”, calma que eu vou falar. Acontece que há exemplo da oportunidade recente em que Scarlett aceitou – não sem grande polêmica – viver uma personagem japonesa (Ghost in the Shell), ela se viu, de novo, em meio a um burburinho pesado ao ser cogitada para viver um homem trans em outro filme. E foi aí que ativistas e internautas curiosos foram pra cima da bela branca, magra, mulher cis que é a formosa atriz.

Ao que tudo indica, ela pode sim, ter sido manipulada para que a tal revista gerasse audiência em cima do histórico de ‘não representatividade’ da moça. Oras, parece lógico que nesse mundo capitalista onde se apela pra qualquer estratégia pra se levar mais e mais dinheiro em tudo, eles tenham maliciosamente falado “chama aquela menina que já deu o que falar interpretando um robô deprê japonês com questões existenciais e pergunta o que ela acha de não poder fazer um transgênero também”.

Ela aceitou, eles – provavelmente – escolheram a forma mais ácida de citar as falas da gatinha e – ZAZ – temos a matéria e uma enxurrada de cliques e views na nossa página. Até porque, seja por exame de consciência, apagamento de incêndio ou só pra limpar a barra mesmo, a própria atriz falou que seu mundo ideal é feito de arte livre a todos, seja pessoa ou árvore que você interpreta. Mas que ela está ciente que uma mulher cisgênero branca – que é o caso dela – tem muito mais oportunidades do que uma japonesa – em Hollywood – ou uma pessoa trans.

Em tempo, não é o caso de se comparar com mudanças de gênero ou etnia de personagens antigos. Falo isso porque sempre tem aquele idiota desinformado que questiona sem pesquisar: “Ain, mas e se o Pantera Negra fosse branco?”. Já falei aqui diversas vezes sobre isso. Existem inúmeros personagens que só foram criados brancos porque era o público de maior poder de compra lá nas décadas passadas (1960, para a maioria das criações Marvel, por exemplo). Outros, como o próprio Pantera, já foram criados para representar justamente o grupo do qual faz parte.

Tipo, Ariel, a Pequena Sereia não precisa ser branca, até porque, existe sereia em várias culturas, desde a apropriadora da Grécia até as africanas, ou você nunca estudou sobre Iemanjá, Oxum, ou mesmo as indígenas brasileiras Iara e Janaína? Então, se você for questionar que uma negra não pode ser uma sereia, acho que você precisa saber que sereias não existem. Elas podem ser imaginadas até com a pele cinza, já que são basicamente, peixes.

Ninguém questiona que o australiano Chris Hemsworth interprete um deus nórdico, mas todos estão ok em criticar a negra Tessa Thompson como Valquíria. Nenhum deles é nórdico e, em último caso, nenhum deles é uma divindade! Então... é diferente. Scarlett se tocou que aceitar um papel de um grupo de ‘minoria’ do qual não pertence seria uma bola fora por tirar a oportunidade de alguém brilhar em seu espaço comum.

Então, conclusão minha, Scarlett Johansson está certíssima em defender que arte é algo do imaginário, que deveria ser aberta a tudo... mas também concordo que a arte aberta nesse mundo atual, só contemplaria os brancos, como fez antigamente. Veja pela história a quantidade de brancos que interpretaram outras etnias só porque a indústria branca não suportaria ver negros, índios, japoneses e outras etnias brilharem no seu mundinho de panela fechada de privilégios e corporativismo.

Não é que uma mulher branca cis não possa interpretar um homem trans, é que cada vez que ela aceita um papel desses, deixa pra trás pessoas que poderiam interpretar igual ou mais lindamente ainda por conhecer esse mundo por dentro. E servir de espelho para outros iguais. Lembram de Whoopi Goldberg quando viu Nichelle Nichols como Tenente Uhura em Star Trek e pensou que poderia estar ali, ou seja, ser uma negra na TV e não ser só sempre a empregada/escrava? Então...

De um branco – e racista - John Wayne interpretando um asiático ao brasileiro caucasiano Sérgio Cardoso fazendo um negro (com algodão por dentro da boca e do nariz pra imitar a fala e feições negras num elenco que tinha Milton Gonçalves ali do lado), toda a indústria do entretenimento só está aprendendo que outras etnias já são numerosas o bastante pra vender tanto quanto seus colegas brancos recentemente. Agora eu faço uma pergunta cretina reducionista pra simplificar ao extremo: Já pensou se a Viúva Negra fosse um cara vestido de mulher porque mulheres protagonistas ‘não vendem tão bem’?

Pense nisso!   


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