Em viagem ao Brasil, o pintor francês Jean Baptiste Debret (1768-1848) criou a gravura acima: Um retrato do mercado de escravos do Valongo, no Rio de Janeiro. O "Mercado Livre" da época. |
Já há quase 130 desde o fim oficial da escravidão no Brasil,
sistema que tinha por base a compra e venda de negros sequestrados e tratados
como mercadoria da África para o Brasil. No antigo Cais do Valongo, Zona
Portuária do Rio de Janeiro, onde tudo começou, pessoas negras eram compradas e
vendidas livremente, ou melhor, comerciantes de gente traficavam livremente
pessoas negras em regime de escravidão. De lá pra cá, o racismo deu certo,
principalmente porque os que o exercem esconderam-no tão bem escondido que se
convenceram de que isso é normal. Não se sentem opressores, ou, em último caso,
beneficiários da opressão. Privilégios de uns e desvantagens de tantos é apenas
um assunto aê, qualquer.
No caminho da luta por uma vida digna, entre tudo já
conquistado, como Dia da Consciência Negra, leis antirracismo e ensino
obrigatório da cultura africana nas escolas, está a lei de cotas. Visando uma
acessibilidade à cidadania, ao ensino, ao emprego, que nunca veio naturalmente
com a abolição da escravatura, as cotas têm por intento garantir a
naturalização de convívio entre brancos e negros, ricos e pobres. Portanto,
vamos parar de repassar esse mito de que cotas são um passe livre que trata o
negro como incapaz, pois o cotista também vai ter que estudar pra passar, se
manter e se formar numa faculdade pública, por exemplo. O resto é conversa de
conservador racista que não quer reconhecer que a presença do negro e do pobre
o incomoda – já que nunca reclamou das injustiças sociais e históricas que se
perpetuam em suas mãos.
O tal anúncio do menino 'não racista'. |
Aí, da escravidão centenariamente abolida e do mercado de
escravos ainda mais antigamente abolido, vem o Mercado Livre – aquele mesmo,
das vendas pela internet – e serve de palco para o anúncio de pessoas negras
por um precinho camarada, só 1 real... CUMA?! Sim, não bastasse vender, tinha
que anunciar pelo menor lance único, amigos. Investigação vai, investigação
vem, rapidamente a Polícia Civil localizou e identificou o responsável: Um
pequeno infante adolescente de 15 anos que, por motivos óbvios, não teve seu
nome divulgado, então, vamos chama-lo de Cássio, igual ao participante do
BBB14, cujo preconceito é ‘uma brincadeira’.
Nosso Cássio, morador da comunidade do Jacarezinho (sim,
carioca, para me matar de orgulho) não passou na primeira fase do exame para o
curso Técnico de Informática do Centro Federal de Educação Tecnológica (o
popular CEFET) Celso Suckow da Fonseca. Segundo o anjinho, ele teria sido
prejudicado pela adoção de cotas para estudantes negros, o que o revoltou e o
impulsionou a publicar o anúncio de negros à venda num dos maiores portais de
compra e venda do Brasil (não é jabá, é pra dar noção da gravidade e
irresponsabilidade de ambas as partes).
A Delegacia de Repressão a Crimes de Informática (belo
começo de carreira, Cássio!) pegou o depoimento do jovem que confessou o crime
e que ainda usou o e-mail da irmã – de 11 anos – para tanto. Depois de duas
horas de depoimento, o menino foi liberado junto de sua mãe, uma professora de
43 e que jura que seu filho não é racista, porque não tem traços de
agressividade (nem de intelecto também, pelo visto) e nem racismo em sua
personalidade ou perfil de redes sociais (mãe do Cássio, não tem ou você não
enxerga assim?). Também estava junto de seu avô, que o repreendeu por não haver
negros aqui, apenas todos mestiços.
Resultado, por ser menor de idade, Cássio “apenas” foi
enquadrado em ato infracional, artigo 20 da Lei 7.716, por ‘praticar induzir ou
incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional’. Cássio será encaminhado à Vara da Infância e da
Juventude. Ele tinha esperanças de não ser identificado, argumento dele que fez
com que a mãe não o levasse a uma delegacia apresenta-lo (em maio, merecerá um
presentão, hein, mamãe!), mas a DRCI efetuou uma ronda virtual, com cruzamento
de dados numa rede social. Segundo o delegado Gilson Perdigão, esse procedimento
é mais trabalhoso, mas evita um rastreamento que dependa de ordem judicial.
A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
divulgou uma nota elogiando a rápida ação da Polícia Civil e também cobrou
providências do Mercado Livre, que depois de ser alertado por internautas,
retirou o anúncio do ar. Aliás, parabéns ao site de vendas por filtrar tão bem seu conteúdo! Tenho certeza que, neste momento, tem alguém pensando "Purra, mas eu tentei anunciar meu cubo mágico seminovo de 1987 e falaram que feria as políticas de conduta do site e pessoas negras por puro despeito são anunciadas sem ninguém reparar antes de ir ao ar? NINGUÉM?! Bah, acho que deixaram só de onda.".
E no frigir dos ovos? Bem, notamos coisinhas bem
interessantes no caso do jovem Cássio. Ele pode até não ser racista, mas acho
mesmo é que sua família nem saiba disso por ter aprendido – e repassado – um
preconceito naturalizado que nem eles notaram ter. Se morando no Jacarezinho
alguém tem topete pra ser racista, então, outro mito cai também. A turma do “o
problema é social e não racial”, pois teimam que preconceito é tudo igual e que
um negro não poderia sofrer racismo de um branco pobre.
O "original", de onde tiramos o pseudônimo de nosso adolescente rebelde. |
Pequeno Cássio também mostrou como a sociedade generalista
pensa as cotas, como um passe livre até a formatura para negros humilharem
brancos com suas largas vantagens sociais e raciais. Geralmente, gente assim não
sabe e tapa os ouvidos gritando “lálálá, não estou ouvindo”, ao menor sinal de
informação coerente sobre o assunto. E, pra finalizar, Cássio, que até chorou
de arrependimento, se disse arrependido, mas quem impede a mãe de apresenta-lo
a uma delegacia por achar que não seria identificado, só pode ter se
arrependido de ser pego e não de ter feito.
Em todo caso, “Cássio”, estudar é pra todos, não só pra você
– que não passou – mas também pra estudantes cotistas. Cotas não são supressão
de vagas ‘normais’, mas adição de vagas ‘negras/índias/pobres’, justamente
porque o intento é a democratização do espaço e do serviço público. Essa lenda
de que é um passe livre é papo de quem quer manter o preto e o pobre “em seu
lugar”, nas periferias, guetos e marginalidade em geral. Mas, tenho forte
intuição de que isso não importa, vale é achar um culpado e, na falta de um
mordomo, porque não estamos no Reino Unido, o negro cai bem como alvo dessa
fúria, afinal, na nossa sociedade é quem mais entende de açoite, né?
#sqn
Fonte: O Dia
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