Crônicas, divagações e contestações sobre injustiças sociais, cultura pop, atualidades e eventuais velharias cult, enfim, tudo sobre a problemática contemporânea.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Não vi e não gostei: Sexo e as Nega

Vamos fazer um exercício de divagação aqui? Eu sei, sei que o nome do blog tem justamente essa proposta, mas, as divagações sempre vêm a partir de uma pesquisa que faço sobre o assunto. Não é criação da minha cabeça aleatoriamente, são reflexões acerca de uma pesquisa em artigos, notícias, documentários e essas coisas. Então, vamos ao porquê de eu não precisar assistir a essa nova série “Sexo e as Nega” pra saber que isso não representa nem turista gringo fazendo Black face de nega maluca no carnaval. A saber, eu vou falar ‘as nega’ mesmo, do jeito ‘malandreado’ que o autor fala nas chamadas do programa.


Primeiro, o autor, Miguel Falabella já tem trabalhos memoráveis em seu currículo, tanto como autor quanto como ator ou diretor e até carnavalesco. Vou discutir talento aqui? NÃO. Mas, dentro dessas obras, vamos ao paralelo da situação presente. Miguelito, enquanto autor, tem fama de ser exigente com seus textos (conhecido como rei  dos improvisos na função de ator, detesta que modifiquem o que escreveu) e, como vários autores, tem lá seus queridinhos – alguns até exclusivos, praticamente sua própria companhia de teatro na TV. Porque estou dizendo isso? Simples, lembremos de um recente sucesso dele: Toma Lá Dá Cá, ou TLDC, pra encurtar. Quantos atores negros você viu ao longo de toda a série no elenco principal? Arlete Salles? Eu conto ela... e... bem, mais ninguém. A mesma pergunta ‘teste do pescoço’se aplica  na telinha durante qualquer outra  obra de Falabella (e da Globo em geral, não sejamos implicantes com o cara). Falo do lado autor, pois, teoricamente, o profissional tem maior liberdade de escolha. Pode até parar por aqui e correr em outra aba do seu navegador e começar a pesquisar com seus próprios olhos. Salsa & Merengue, Sai de Baixo, A Vida Alheia, Pé na Cova... vai lá e me diga quantos negros você vê em destaque, pra comprovarmos a boa vontade em se representar a mulher do povo, a mulher negra, a mulher que é mais de 50% da população brasileira e nunca passa da cozinha ou da cama nas obras em geral (a menos que seja Camila Pitanga ou Taís Araújo, com ressalvas).

Tá vendo a negritude bem representada quando o cenário é a família de classe média brasileira?

Segundo, não é uma questão de falar do que não se sabe, pois, numa visão ampla, a Globo e a TV em geral, são excludentes com o negro. Tentam mandar esse migué que não há racismo, mas o tema nunca é abordado seriamente numa novela. Ao passo que tráfico de gente, doenças variadas e situações sociais diversas são expostas e alardeadas com seus prêmios de humanidade aflorada (mas quando falamos em racismo, dizem que é só ficção, não precisam retratar a realidade, vai entender...). Então, sabemos bem do que estamos falando. Lembre, obras como Gabriela ou Tereza Batista (ambas de Jorge Amado) já clarearam bem a mulher hiper-sensualizada da literatura (vide Sônia Braga e Juliana Paes como Gabriela e Patrícia França como la Batista). Obras como as de Aguinado Silva sempre trazem a bela Cris Vianna como a negra possível do filho do patrão. Ela já foi a empregada sexual do filho do patrão em Duas Caras e a humilde quituteira/mãe solteira que se envolvia com o português (olha aí, lição histórica) do quiosque, que a contratava para abastecer seu estabelecimento de comida e investidas carinhosas. Sem contar os gratuitos banhos de balde/mangueira na laje do barraco na comunidade. A mais recente está no ar, a moça é uma ex-passista de escola de samba. Empresária? Advogada? Engenheira? Bah, pra quê? Se colocasse La Vianna como filha do protagonista, teriam que arrumar muitos outros negros para compor seu núcleo, já que uma família na TV só convence se todo mundo for da mesma cor. Por falar em Duas Caras, essa novela ainda trouxe um momento icônico para o racismo institucional brasileiro: A – também bela e talentosa – Juliana Alves interpretando uma ‘periguete’ do núcleo da comunidade que, de repente, se decidia por entrar numa faculdade, por meritocracia e lia ‘Não Somos Racistas’, livro de Ali Kamel, todo-poderoso diretor jornalístico da Vênus platinada, que mantém, ao mesmo tempo, uma contenda descaradamente velada com o movimento negro e essa hipocrisia de afirmar não ser racista, mas não ter um negro por perto no alto escalão e peneirar bem etnicamente os outros setores da empresa.


Mas o papo aqui é Sexo e as Nega. Outra questão, não adianta falar que é uma singela homenagem à mulher negra, a Cordovil (subúrbio carioca) ou uma referência a Sex and the City. Primeiro, Sex and the City se traduz – no meu Inglês de programa legendado – como Sexo e a Cidade. É uma série ‘de menina’, mostrando o cotidiano de 4 amigas cheias da grana e suas desventuras amorosas. Colocar o nome ‘as nega’ já demonstra que o rótulo é intencional e não um acidente. Em Comunicação Social, aprendemos bem cedo que mensagens são bem escolhidas antes que saiam a público. Se fosse pra mostrar a vida das mulheres do povão, guerreiras, resistentes e resilientes, já o teriam feito, já que trocentas novelas são produzidas todo ano. Mas não, pegaram um programa inteiro. UM PROGRAMA INTEIRO pra exibir o que nunca fizeram até hoje? Ah, vá, né? Eu não sou tuas nega pra tu me engabelar assim. Não uma, nem duas, mas quatro QU4TRO protagonistas! O sinhõ abriu a porta da senzala em dia de festa, com certeza, né? Ficaram tão representativos...


Outro tema interessante é o elenco e o autor defendendo que as críticas a esse intento estranho é ‘politicamente correto’, pois, segundo uma das atrizes, a implicância seria também com o termo ‘nega’ em si. Lindas, nunca achei isso, particularmente, pois ‘nega’ é um termo carinhoso, dependendo do tom. A questão não é acusação de racismo por uma palavra (pelamor, mulher, observe as camadas da situação!). Esvaziar o discurso do outro com ‘politicamente correto’ é o mesmo que tapar os ouvidos e gritar ‘lálálá, não estou te ouvindo’. Criancice e pouca vontade de estabelecer um debate sincero e interessante. Não julgo o elenco, todo mundo tem que trabalhar pra se manter e, quem sabe, daí, elas não se destacam e alçam-se a vôos mais dignos. Taís Araújo já foi ‘teúda e manteúda’ de um coronel em Tocaia Grande até virar Xica da Silva e ser um dos nomes mais respeitados em nossa teledramaturgia contemporânea, por exemplo. Não as julgo. Julgo o sinhozinho. Ele tem uns 30 anos de carreira e nunca colocou negros pra fazer mais que ouvir piadas com cabelos, caricaturas estereotipadas e outras ‘coadjuvantices’ bem típicas da casa grande.  


Então, gente, a coisa é por aí. Não assisti, não assistirei, respeito a busca por espaço do elenco envolvido, mas a emissora já me convenceu há tempos que não nos quer lá se for pra sermos gente normal. Não gosto do Esquenta, não gostarei de sua versão dramatizada e não gosto de ser tratado como um turista exótico em meu próprio país, onde não posso ligar a televisão sem achar que estamos na Holanda ou algum outro país onde o negro é minoria. Aliás, onde o negro é minoria, há mais representatividade do que aqui. Peguemos o maior produtor de conteúdo da cultura pop  mundialmente distribuída: Os EUAses. Muitas obras por lá são muito representativas. Fresh Prince of Bel Air/Um Maluco no Pedaço, My Wife and kids/Eu a Patroa e as crianças são algumas das mais famosas por aqui. São negros de classe média, classe alta, são profissionais respeitados, almoçam, usam escovas de dentes e vestem as calças uma perna por vez. São normais e nunca vi alguém reclamar disso, mas as emissoras daqui insistem que somos alegorias de carnaval. Então, o desafio está lançado. Que alguém me mostre depois que estamos todos enganados e que Sexo e as Nega vai ser uma bela representação lúdica da mulher pobre e preta.


É só a gente pensar naquela equação básica da sociedade. Se vivemos num regime machista, onde a mulher é rebaixada a uma serviçal que tem que ficar provando obediência pra ser considerada ‘mulher de verdade’, por outro lado, vivemos num regime racista, onde o negro é rebaixado a um grupo exótico e serviçal que deve obediência para não ser exterminado... Então, a mulher preta, automaticamente vai pra base da pirâmide de juízo de valor social, quando aparece fora da cozinha é armando algum barraco, sofrendo na mão de algum ‘bom malandro’ ou na cama do patrão – ou seu filho. Isso quando têm algum background, pois, é muito comum também a mulher preta aparecer ali na casa grande do empresário e só fazer abrir portas, servir cafezinhos e fofocar da vida de gente rica. Se eles vão de Falabella pra falar da negritude feminina, eu vou de Victória Santa Cruz: Me Gritaron Negra (...) NEGRA (SI) NEGRA (soy)...



 É isso que dá não haver negros com o papel e a caneta escrevendo. E se tivesse, certamente teriam achado algum daqueles 'a folha é contra cotas e eu também', tipo aquela modelo (sei lá de que trabalho que ela fez). Bem, o que usam pra nos diminuir é o que temos orgulho, é nossa identidade. 

Inté.

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