Vamos fazer um exercício de divagação aqui? Eu sei, sei que
o nome do blog tem justamente essa proposta, mas, as divagações sempre vêm a
partir de uma pesquisa que faço sobre o assunto. Não é criação da minha cabeça aleatoriamente,
são reflexões acerca de uma pesquisa em artigos, notícias, documentários e essas
coisas. Então, vamos ao porquê de eu não precisar assistir a essa nova série “Sexo
e as Nega” pra saber que isso não representa nem turista gringo fazendo Black face
de nega maluca no carnaval. A saber, eu vou falar ‘as nega’ mesmo, do jeito ‘malandreado’
que o autor fala nas chamadas do programa.
Primeiro, o autor, Miguel Falabella já tem trabalhos
memoráveis em seu currículo, tanto como autor quanto como ator ou diretor e até
carnavalesco. Vou discutir talento aqui? NÃO. Mas, dentro dessas obras, vamos
ao paralelo da situação presente. Miguelito, enquanto autor, tem fama de ser
exigente com seus textos (conhecido como rei
dos improvisos na função de ator, detesta que modifiquem o que escreveu)
e, como vários autores, tem lá seus queridinhos – alguns até exclusivos,
praticamente sua própria companhia de teatro na TV. Porque estou dizendo isso? Simples, lembremos de um recente
sucesso dele: Toma Lá Dá Cá, ou TLDC, pra encurtar. Quantos atores negros você
viu ao longo de toda a série no elenco principal? Arlete Salles? Eu conto
ela... e... bem, mais ninguém. A mesma pergunta ‘teste do pescoço’se aplica na telinha durante qualquer outra obra de Falabella (e da Globo em geral, não
sejamos implicantes com o cara). Falo do lado autor, pois, teoricamente, o
profissional tem maior liberdade de escolha. Pode até parar por aqui e correr
em outra aba do seu navegador e começar a pesquisar com seus próprios olhos. Salsa
& Merengue, Sai de Baixo, A Vida Alheia, Pé na Cova... vai lá e me diga
quantos negros você vê em destaque, pra comprovarmos a boa vontade em se
representar a mulher do povo, a mulher negra, a mulher que é mais de 50% da
população brasileira e nunca passa da cozinha ou da cama nas obras em geral (a
menos que seja Camila Pitanga ou Taís Araújo, com ressalvas).
Tá vendo a negritude bem representada quando o cenário é a família de classe média brasileira? |
Segundo, não é uma questão de falar do que não se sabe,
pois, numa visão ampla, a Globo e a TV em geral, são excludentes com o negro.
Tentam mandar esse migué que não há racismo, mas o tema nunca é abordado
seriamente numa novela. Ao passo que tráfico de gente, doenças variadas e
situações sociais diversas são expostas e alardeadas com seus prêmios de
humanidade aflorada (mas quando falamos em racismo, dizem que é só ficção, não
precisam retratar a realidade, vai entender...). Então, sabemos bem do que
estamos falando. Lembre, obras como Gabriela ou Tereza Batista (ambas de Jorge
Amado) já clarearam bem a mulher hiper-sensualizada da literatura (vide Sônia
Braga e Juliana Paes como Gabriela e Patrícia França como la Batista). Obras
como as de Aguinado Silva sempre trazem a bela Cris Vianna como a negra
possível do filho do patrão. Ela já foi a empregada sexual do filho do patrão
em Duas Caras e a humilde quituteira/mãe solteira que se envolvia com o
português (olha aí, lição histórica) do quiosque, que a contratava para
abastecer seu estabelecimento de comida e investidas carinhosas. Sem contar os gratuitos banhos de balde/mangueira na laje do barraco na comunidade. A mais recente
está no ar, a moça é uma ex-passista de escola de samba. Empresária? Advogada?
Engenheira? Bah, pra quê? Se colocasse La Vianna como filha do protagonista,
teriam que arrumar muitos outros negros para compor seu núcleo, já que uma
família na TV só convence se todo mundo for da mesma cor. Por falar em Duas
Caras, essa novela ainda trouxe um momento icônico para o racismo institucional
brasileiro: A – também bela e talentosa – Juliana Alves interpretando uma ‘periguete’ do núcleo da comunidade que, de repente, se decidia por entrar numa faculdade, por meritocracia e lia ‘Não
Somos Racistas’, livro de Ali Kamel, todo-poderoso diretor jornalístico da Vênus
platinada, que mantém, ao mesmo tempo, uma contenda descaradamente velada com o
movimento negro e essa hipocrisia de afirmar não ser racista, mas não ter um
negro por perto no alto escalão e peneirar bem etnicamente os outros setores da
empresa.
Mas o papo aqui é Sexo e as Nega. Outra questão, não adianta
falar que é uma singela homenagem à mulher negra, a Cordovil (subúrbio carioca)
ou uma referência a Sex and the City. Primeiro, Sex and the City se traduz – no
meu Inglês de programa legendado – como Sexo e a Cidade. É uma série ‘de menina’,
mostrando o cotidiano de 4 amigas cheias da grana e suas desventuras amorosas.
Colocar o nome ‘as nega’ já demonstra que o rótulo é intencional e não um
acidente. Em Comunicação Social, aprendemos bem cedo que mensagens são bem
escolhidas antes que saiam a público. Se fosse pra mostrar a vida das mulheres
do povão, guerreiras, resistentes e resilientes, já o teriam feito, já que
trocentas novelas são produzidas todo ano. Mas não, pegaram um programa
inteiro. UM PROGRAMA INTEIRO pra exibir o que nunca fizeram até hoje? Ah, vá,
né? Eu não sou tuas nega pra tu me engabelar assim. Não uma, nem duas, mas quatro QU4TRO protagonistas! O sinhõ abriu a porta da senzala em dia de festa, com certeza, né? Ficaram tão representativos...
Outro tema interessante é o elenco e o autor defendendo que
as críticas a esse intento estranho é ‘politicamente correto’, pois, segundo
uma das atrizes, a implicância seria também com o termo ‘nega’ em si. Lindas,
nunca achei isso, particularmente, pois ‘nega’ é um termo carinhoso, dependendo
do tom. A questão não é acusação de racismo por uma palavra (pelamor, mulher,
observe as camadas da situação!). Esvaziar o discurso do outro com ‘politicamente
correto’ é o mesmo que tapar os ouvidos e gritar ‘lálálá, não estou te ouvindo’.
Criancice e pouca vontade de estabelecer um debate sincero e interessante. Não
julgo o elenco, todo mundo tem que trabalhar pra se manter e, quem sabe, daí,
elas não se destacam e alçam-se a vôos mais dignos. Taís Araújo já foi ‘teúda e
manteúda’ de um coronel em Tocaia Grande até virar Xica da Silva e ser um dos
nomes mais respeitados em nossa teledramaturgia contemporânea, por exemplo. Não
as julgo. Julgo o sinhozinho. Ele tem uns 30 anos de carreira e nunca colocou
negros pra fazer mais que ouvir piadas com cabelos, caricaturas estereotipadas
e outras ‘coadjuvantices’ bem típicas da casa grande.
Então, gente, a coisa é por aí. Não assisti, não assistirei,
respeito a busca por espaço do elenco envolvido, mas a emissora já me convenceu
há tempos que não nos quer lá se for pra sermos gente normal. Não gosto do
Esquenta, não gostarei de sua versão dramatizada e não gosto de ser tratado
como um turista exótico em meu próprio país, onde não posso ligar a televisão
sem achar que estamos na Holanda ou algum outro país onde o negro é minoria.
Aliás, onde o negro é minoria, há mais representatividade do que aqui. Peguemos
o maior produtor de conteúdo da cultura pop mundialmente distribuída: Os EUAses. Muitas
obras por lá são muito representativas. Fresh Prince of Bel Air/Um Maluco no
Pedaço, My Wife and kids/Eu a Patroa e as crianças são algumas das mais famosas
por aqui. São negros de classe média, classe alta, são profissionais
respeitados, almoçam, usam escovas de dentes e vestem as calças uma perna por
vez. São normais e nunca vi alguém reclamar disso, mas as emissoras daqui
insistem que somos alegorias de carnaval. Então, o desafio está lançado. Que
alguém me mostre depois que estamos todos enganados e que Sexo e as Nega vai
ser uma bela representação lúdica da mulher pobre e preta.
É só a gente pensar naquela equação básica da sociedade. Se
vivemos num regime machista, onde a mulher é rebaixada a uma serviçal que tem
que ficar provando obediência pra ser considerada ‘mulher de verdade’, por
outro lado, vivemos num regime racista, onde o negro é rebaixado a um grupo exótico
e serviçal que deve obediência para não ser exterminado... Então, a mulher preta,
automaticamente vai pra base da pirâmide de juízo de valor social, quando
aparece fora da cozinha é armando algum barraco, sofrendo na mão de algum ‘bom malandro’
ou na cama do patrão – ou seu filho. Isso quando têm algum background, pois, é
muito comum também a mulher preta aparecer ali na casa grande do empresário e
só fazer abrir portas, servir cafezinhos e fofocar da vida de gente rica. Se
eles vão de Falabella pra falar da negritude feminina, eu vou de Victória Santa
Cruz: Me Gritaron Negra (...) NEGRA (SI) NEGRA (soy)...
É isso que dá não haver negros com o papel e a caneta escrevendo. E se tivesse, certamente teriam achado algum daqueles 'a folha é contra cotas e eu também', tipo aquela modelo (sei lá de que trabalho que ela fez). Bem, o que usam pra nos diminuir é o que temos orgulho, é nossa identidade.
Inté.
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